Tanto na semana passada quanto nessa a notícia que mais correu na internet foi sobre a criança de Brad Pitt e Angelina Jolie, designada menina no nascimento e que, no entanto, gosta de ser tratado no masculino e vestir roupas comumente designadas ao sexo masculino. Creio que, se a criança se sente menino, adotou um nome masculino (John) e os pais estão de acordo e ainda expõe para a mídia, é uma total falta de respeito continuar tratando-o no feminino, como absolutamente todas as notícias que eu vi fizeram. Mas não, hoje eu não vim falar de transexualidade por aqui.
Eu já tenho um sexto sentido um pouco apurado (ou simples experiências online) que me dizem "nunca leia os comentários". Nunca. Nunca mesmo. Mas eu sempre fui teimosa e vez ou outra gosto de contrariar até a mim mesma. Foi o que eu fiz. Me surpreendi: primeiro, positivamente. Depois negativamente. Vi uma mulher comentando o quão evoluídos Angelina e Brad eram por respeitarem a identidade de gênero de seu filho, dando a ele a liberdade de poder ser quem ele é de fato. E depois veio a tristeza do comentário de um homem respondendo ao dela "Queria ver se fosse seu filho, o que você faria."
Eu não conheço o homem que respondeu isso e não gostaria de perder nem cinco minutos da minha vida o conhecendo. Eu não quero estar perto de gente assim. E é ainda pior saber que o comentário dele não é incomum de ser lido por aí, em notícias do tipo. Mas eu não consegui esquecer essa frase, a ponto de sonhar com ela e acordar no meio da noite pensando nisso - e em algumas palavras que eu precisava escrever hoje por aqui.
Eu sou uma menina. Aos oito anos eu já sabia que era uma menina - como também sabia aos quatro, aos cinco, aos seis, aos sete e continuo sabendo até hoje, aos dezenove. Seria engraçado, se não fosse extremamente triste, que as pessoas possam questionar o quanto uma criança de oito anos sabe da vida para dizer se é menino ou menina. Essas pessoas provavelmente nunca foram crianças. Essas pessoas provavelmente nem nasceram, ou esqueceram completamente de suas vivências infantis. Crianças não são seres desprovidos de inteligência, de tato, de autoconhecimento. Uma criança sabe exatamente dizer se é menino ou menina, como enxerga a si mesma, o que quer ser. Quando eu nasci disseram aos meus pais que eu era uma menina. Eu ganhei roupinhas cor-de-rosa - porque é essa a cor que se espera que meninas gostem. Eu não gosto de rosa, mas continuo sendo uma menina. Ninguém me pergunta se eu "já tirei da cabeça essa ideia de ser menina". Ninguém me pergunta se eu "continuo menina". Quando eu "virei menina". Quando eu vou "deixar de ser menina". Eu sou uma privilegiada por não ter minha identidade questionada a qualquer momento. Como a maioria das pessoas são. Você pode discordar disso, tudo bem. Este é um direito seu. Mas discordar da autonomia de uma criança não lhe dá o direito de desrespeitá-la, humilhá-la ou questionar a criação que os pais deram à ela.
Hoje é dia de Natal, e mesmo não sendo cristã, minha família é e essa é uma festa já incorporada à rotina de quase todas as famílias, inclusive as que não compartilham dos valores do cristianismo. E hoje também é um dia de muita tristeza para milhares de pessoas que não podem estar no seio de suas famílias compartilhando um almoço - porque elas não são aceitas pelas mesmas. Isso não é vitimismo por parte dessas pessoas. Eu li inúmeros relatos, inclusive de amigos, que passaram/passariam o Natal completamente sozinhos ou com um pequeno grupo de amigos simplesmente porque a família não os aceita. Por terem suas identidades de gênero renegadas por aqueles que mais deveriam amá-los, apoiá-los e aceitá-los: os pais.
Um filho não é monopólio de seus pais. Ele não é um brinquedo que você decide comprar e quando este o desagrada, pode largar pelos cantos e esquecer de sua existência. Um filho tampouco tem o dever de seguir os passos dos pais, viver a vida que eles planejaram para si e esquecer de seus próprios sonhos, planos e até de sua identidade. Querer colocar um filho no mundo pensando em deixar de amá-lo caso ele contrarie seus paradigmas é no mínimo egoísta - para não dizer coisa muito pior.
Então, caro rapaz que fez este comentário infeliz numa publicação sensacionalista e desrespeitosa de um site de notícias, por favor: não tenha filhos. Crie cachorros. Gatos. Papagaios. Porquinhos-da-índia. Há toda uma gama de animais de estimação que só estão por aí esperando uma bondosa alma que os dê amor e carinho. Animais não falam. Animais não contrariam seus donos, não contrariam sua religião, seus princípios, seus dogmas. Animais obedecem fielmente - e irracionalmente - seus donos. Creio que seja o tipo de companhia mais adequado à você. Ao contrário deles, filhos - sejam crianças, adolescentes ou adultos - tem opiniões, vontades, personalidades e vivências próprias. Eles não são marionetes movidos pelas mãos calejadas dos pais. Eles decepcionarão seus responsáveis. Mais de uma vez. Mais de duas. Eu provavelmente já decepcionei os meus inúmeras vezes. Você também já fez isso. Os meus pais e os seus provavelmente o fizeram também. Porque eles são humanos - feitos da mesma carne e do mesmo sangue que eu e você. É necessário muito esforço para lidar com isso, eu posso imaginar. Não deve ser nem um pouco fácil. Mas você não pode condenar uma pessoa a uma vida de repressão e infelicidade só porque você não sabe lidar com isso.
Então, por favor, não tenha filhos. E tenha um pouco mais de amor em seu coração - e respeito também, principalmente respeito.